Faz menos de duas
décadas que o brasileiro livrou-se oficialmente dos grilhões da
censura. O que não quer dizer que o fantasma não mais nos assombre.
Recentemente, o governo dos trabalhadores, cujos integrantes desde os
primeiros anos da revolucionária década de 80 bradaram contra tudo
e todos (e continuam bradando com a mesma imponência, só que do
outro lado da mesa e defendendo-se), tentou costurar acordos e apoios
espúrios nos corredores do Planalto para controlar a imprensa. Ainda
bem que, momentaneamente, esses esforços típicos do caudilhismo
sul-americano tenham sido estancados, e, pelo bem geral da nação,
esperamos que a situação assim permaneça, vitaliciamente.
Pois, na semana que
passou, presenciamos novo grito de censura. Um parlamentar, após
assistir um filme não recomendado a menores de 16 anos acompanhado
de seu filho de 11 primaveras, vestiu a tão bem conhecida armadura
de “ôtoridade” e, ajudado pela instantaneidade das comunicações
cibernéticas, iniciou uma batalha irracional para, em seu primeiro
intento, tirar o filme de circulação. Brasileiro sabe dar show,
isso é senso comum. Mas o bom senso exige voz baixa e raciocínio
pausado e afiado. Primeiro: ainda que amparado pela lei, por estar
acompanhando o seu filho, o parlamentar em questão assumiu, ele e
mais ninguém, o risco de que seu filho assistisse algo que não era
para sua idade. O filme foi avaliado por uma comissão tecnicamente
capaz de fazê-lo. Portanto, o hiato de 5 anos entre a idade do
espectador e a idade mínima recomendada não pode passar em branco.
Segundo, e o mais importante: tirar o filme de circulação? Como
assim, meu senhor? Isto é censura! O Brasil não é o país da
democracia? O país que exporta a melhor urna e blá-blá-blá?
Devemos dar este exemplo de democracia. Num momento em que
ambicionamos uma posição de titular no escrete global, dar um grito
ditatorial como esse é contraproducente. É honrar o que de mais
vergonhoso temos em nossa sociedade: o dois-pesos-duas-medidas. Pois
imoralidade e indignidade, para qualquer um ver, seja qual for a
idade, é o que mais há nesse país.
Outra discussão bem
válida neste mesmo tópico foi o recente caso do vídeo que
deflagrou um ódio endêmico nas nações islâmicas. Sim, o vídeo é
uma completa agressão a toda e qualquer noção de bom gosto,
respeito religioso e qualidade de produção. Mas a correta postura
das autoridades norte-americanas no que tange a liberdade de
expressão é digna de elogio. O presidente Barack Obama e sua equipe
atravessaram com maestria a areia movediça que tornou-se a discussão
em torno da liberdade de expressão. Porque liberdade de expressão
não é isenção de responsabilidade. Quem faz a arte tem que
responder por ela. Mas pode fazê-la, e ponto. Não vou entrar nos
pormenores do caso: equipe ludibriada e utilizada por um diretor
inescrupuloso et
cetera;
se o cidadão foi canalha com sua equipe, ele vai responder
propriamente por isso. Mas a simples ameaça à liberdade de
expressão já gerou celeuma na sociedade norte-americana. A mesma
celeuma que o citado parlamentar enfrentou, em sua conta no Twitter.
As demonstrações foram milhares, em milhares de formas e conceitos
e opiniões, mas a chama-mestra de todas é a mesma: não há nada
que o ursinho do filme faça que não se veja na sociedade. Quer o
senhor queira, quer não. Permitir que os maiores de 16 anos (ou 18,
conforme a reformulação do protesto do parlamentar pretende) vejam
o ursinho fumar um beise, tomar todas e ser misógino é um direito
constitucionalmente garantido. Acho muito mais nocivo para um
adolescente ver o Paulo Maluf apertando a mão do Lula, ou ver um
policial indiciado pelo Massacre do Carandiru, ocorrido há 20 anos,
comandar nos dias atuais o batalhão policial conhecidamente mais
truculento do país, a ROTA paulistana.
A arte é um
caleidoscópio, com milhares de facetas e cores e formatos. E não é
obrigatória. Cada um absorve a arte que quer, se quiser. Porque cada
arte tem uma forma de expressão, uma ideia, uma mensagem. Arte livre
é liberdade de expressão. Liberdade de expressão é democracia.
Constituição de 1988, e ponto final. Só evolui a sociedade que
sabe se avaliar. Arte é avaliação e abstração de vida. Deixar a
arte livre é uma forma de deixar seus cidadãos olharem para si
mesmos e refletirem. A mesma finalidade possui a educação. Uma
sociedade democrática honra a arte e honra a educação. Porque sabe
que cidadãos que possam expressar-se criativamente vão surgir com
novas ideias. Porque sabe que cidadãos bem instruídos vão pegar
essas novas ideias e trabalhá-las até que, otimizadas, possam gerar
os melhores resultados. Dizer que algo não pode ser exposto é
censura. Determinar que tipo de arte pode chegar ao povo que os
senhores, caros políticos, representam é censura. Vemos com clareza
o que ocorre na China, em Cuba, na Coreia do Norte: arte, em governos
ditatoriais, nada mais é que propaganda (os caribenhos, para seu
bem, gozam de um pouco mais de liberdade que as outras duas nações
citadas). Arte, nessas conjunturas, vira instrumento de controle
ideológico e social. Nessas sociedades, a arte livre não morre, mas
fica relegada ao submundo. E arte, meu senhor, é um pássaro, tem
que voar livremente. Dentro do universo da arte, há todo tipo de
pássaro, de sabiás a urubus. Mas gosto é coisa individual. Eu
posso ter ojeriza a pombos, mas tem quem goste. Não tenho a mínima
intenção de exterminá-los, apenas os evito. Com arte é a mesma
coisa. O ursinho, meu senhor, não precisa aparecer na TV aberta;
concordo que nem o deva. Mas negar sua existência, e a importância
da reflexão que ele possa proporcionar, é de uma ignorância sem
tamanho.
(Diego Vargas)