quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Dor


Eu sinto uma saudade infinita, sem fim e nem começo, saudade que insiste em inundar meu peito, se o mundo acabasse penso que estaria livre dela, dor tão doída que me assola, pensamento egoísta o meu eu sei, então o que resta é ficar por aí me anestesiando com coisas bobas e incompletas.

Ah como eu queria um alívio imediato para quando esse desespero que deságua pelos meus olhos batesse em minha porta  eu sentisse menos ou não sentisse nada.

 Ttroco essa dor pelo desamor, troco essa dor pelo dissabor, troco essa dor pela maior dor de não ser.
(Fabiana Leivas )

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Lá e cá


É estranho quando você não consegue mais acreditar que será melhor sozinho.
Quando aquele sorriso doce flerta com o travesseiro,
quando aquele olhar macio se mistura com os lençóis, e as respirações se aproximam.
Quando é mais gostoso passar a noite esperando o dia.

Não que isso seja um sentimento ruim. É estranho, mas confortável.
Soa como voltar para casa depois de uma longa viagem.
Você gostaria de estar nos dois lugares ao mesmo tempo.
Tanto lá, como cá.

O problema é pensar demais antes de agir. Temer a razão.
Querer isso e fazer aquilo. Fazer isso e querer aquilo.
Quem teme a razão, suprime a emoção.
Então você se tranca entre tudo o que é, e o que poderia ser.

Cansei de passar por isso.
De ficar assistindo o inverno por janelas embaçadas.
Esperar o final da história não satisfaz uma alma inquieta.

Não conseguiria escrever um livro,
mas sou capaz de viver um romance.
Com areia, sol e mar,
e uma vida inteira para viver em par.

(Vinni Biazzus)

Beijo aos 42

- Amor?
- Fala.
- Acordei pensando...
- Bom, bom. Sinal de que meu dia correrá sem grandes percalços.
- É sério, presta atenção. E se o mundo acabar?
- Puff, acabou. Me passa a geleia.
- Sério, presta atenção! E se ele acabar?
- A geleia, presta atenção você!
- Eu nunca visitei um templo budista na Ásia, daqueles bem suntuosos.
- Você não visita nem teus afilhados, que história é essa de templo budista?
- Dia 21 está chegando, tanta coisa que eu não fiz.
- Começa vestindo uma camiseta, já te pedi trezentas vezes para não tomar café da manhã só de samba-canção. Já imprimiu o boleto que te pedi?
- Amor, você está se diminuindo perante a grandeza da possibilidade de tudo que conhecemos acabar no dia 21!
- E você está esquecendo de se servir de leite, não vou tirar a nata.
- O que você faria se soubesse que o mundo estava prestes a acabar?
- Com quanto tempo de antecedência?
- Não importa.
- Claro que importa!
- Tá, vá lá... Uma semana.
- Filmava a gente transando e jogava na rede.
- Tá louca?
- Ué? Não vai acabar mesmo? Jogava tranquilamente. Sempre quis ser pivô de um escândalo sexual. Fazia tudo que fizemos nas bimbadas do primeiro ano de casamento.
- Façamos agora!
- Nem pensar, minha depilação está marcada para amanhã.
- O quê mais?
- Dois dias antes, ia numa boate gay. E você iria junto.
- Pra quê?
- Pra, quem sabe, você beijar um homem com gosto.
- O quê? Nunca quis beijar um homem!
- Explica isso pro papai, até hoje ele não entendeu aquele selinho quando você estavam assistindo a final do campeonato, com aquele gol aos 42 do segundo tempo. Aliás, ele pediu pra avisar que ele e mamãe não estarão na cidade para o Natal. Nem no Ano Novo. E pediu que só as crianças e eu os visitemos daqui pra frente.
- Se o mundo não acabar, tentarei esclarecer isso com ele. Voltando ao assunto: que você acha de irmos todos, as crianças inclusive, para um sítio esperar o Apocalipse?
- Acho que você está querendo desculpa para bandalheira. As crianças vão para a praia com a Déia, e nós temos Natal e Revéillon para planejar.
- E se não passarmos do 21?
- A gente cozinha tudo o que tem em casa rapidamente e morre de indigestão, pode ser? Melhor que morrer de indigestão com o infeliz do salpicão com que tua mãe insiste em agredir as pessoas.
- Eu nunca pulei de para-quedas...
- Se não acabar teu café logo, vai ter que pular de para-quedas na empresa; esqueceu da tua reunião? Apocalipse vai ser teu chefe gritando no teu ouvido. Vai trabalhar, Teodoro! E não esquece de trazer amaciante na volta!

(Diego Vargas)

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

MORRE MAS A GENTE VIVE

Olha, já foi mais assustador. No início, quando eu andava por este cemitério à noite, se caísse um graveto no chão era capaz de eu me mijar nas calças. Aliás, aconteceu uma vez. Não seguro mais o xixi, vou no banheiro na primeira oportunidade. Mas não por isso, é porque não faz bem. A gente tem que aprender com as merdas que acontecem, né? Me mijei, minha mãe me deu uma bronca, dizendo que eu ainda ia baixar hospital por prender demais, aprendi.

Peguei esse emprego depois que ela adoeceu. Minha mãe, véia esperta, de bom coração. Bom no que ele te dá, mas ruinzinho no trabalho. Bate meio destrambelhado, ela não pode fazer muito esforço. Sempre moramo aqui na frente, era ela a responsável por cuidar dos túmulos. Sempre cuidou bem. Mas ela não é essas pessoa negativa, que vive em função da morte. Sempre amou a vida. Por isso que cuidava daqui. Já é lugar pesado, o povo acredita nas alma penada. Minha mãe nunca acreditou. Sempre ensinou que a gente tem que ter medo dos vivo, não dos morto. Então embelezava, limpava tudo, cuidava das flor. Sempre foi um cemitério muito bonito, bem cuidado.

Pai? Sei quem é não. É filho-da-puta, isso eu sei. É não, foi. Minha mãe nunca me disse quem era, eu respeito. Foi a única pessoa que algum dia conseguiu tirar o sorriso da cara dela. E quem machuca uma pessoa tão boa tem mais é que se estrepar mesmo. Só sabia que ele tinha morrido de bala nesse mundão. Nem faz falta. Mas ela foi pai e mãe. De um só filho, tenho irmão não. Ganhava pouco aqui no cemitério, mas era empregada querida da prefeitura, pelo zelo. Era enrabichada do outro coveiro, que trabalhava aqui antes de mim. Só falava por telefone com ele, sujeito bom. Só deixei claro que se fizesse malvadeza com minha mãe, ia se fuder na minha mão. Nunca mijou fora do penico, ainda bem.

Recebi a carta de minha mãe dizendo que tava doente. Acho que foi a morte do coveiro que adoentou o coração dela. Eles se gostavam. Ela gostava de vida. E quem gosta da vida não gosta de ficar sozinho, de não ter com quem conversar. Depois que fui embora atrás de dinheiro, a veia ficou bem com ele. Se cuidavam, se gostavam. A véia ficou mal, sem mais família no mundo, voltei pra cuidar. Acho que ela não vai muito longe, mas tá bem, tá em paz. Diz que viveu bastante, viveu bem, foi feliz. Isso que importa, olhar pra trás e sentir paz.

Tive família sim. Lá eu trabalhava em metalúrgica, tinha casa minha, vida até que boa, dá pra reclamar não. Mas um dia minha Linda... Era linda mesmo, não só no nome. Minha Linda e o garoto tavam no banco, deu assalto, tiroteio. Nunca contaram de que lado veio a bala que matou. A bala, uma só. Minha Linda escondeu o Júnior atrás, a bala atravessou e matou os dois. Nem quis saber, o que me importava é que minha Linda e Juninho tinham ido, dane-se quem matou. Pelo menos pra mim, pouco importa. Foi selvageria, foi violência, foi muita bala. Morreu mais gente. Pra mim foi dor fudida. Dor de perder filho é ruim, viu? Continuei trabalhando, pra sobreviver. Fiquei triste por demais. Triste por quatro mês, só. Tragédia nunca vem sozinha. Morreu os dois, morreu o coveiro, chegou a carta. Vim acudir mamãe.

Hoje tem só eu de funcionário. O prefeito me paga o que o coveiro e a servente ganharia, se eu prometesse cuidar. Mamãe dá as dica, eu faço. É legal cuidar de flor, é legal botar cor nas coisa. Dá alegria nas vista. Mamãe tá lá em casa, eu trabalhando aqui. Mas ela tá feliz, vê a tevezinha dela e conversa bastante comigo. Sabe me aliviar a dor da falta da minha Linda e do Juninho. Tenho pouca folga, vou passear pelos campo aí pra desanuviar a cabeça. Sô novo ainda, dá pra fazer mais família. Mas agora quero não. Embelezar e cuidar bem da dor dos outro aqui me ajuda a diminuir a minha. Mamãe também ajuda, mas sei que ela não vai ficar pra sempre. Sem ninguém, vim cuidar dela, pra que o resto de vida dela seja bonito. Ela sempre fez da vida uma coisa bonita, sempre me ensinou umas coisa que deixa o coração feliz. Sempre me ensinou que a vida é bonita, mas a gente tem que enxergar beleza. E sempre me diz, depois da minha tragédia: “Filho, tu perdeu gente que tu ama. Mas num perdeu tu mesmo.”

(Diego Vargas)

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Desencontrados

Eles não se viam há muito tempo, mas aquele reencontro casual no elevador, despertou nela sensações  raras, que não a visitavam desde os poucos momentos em que estiveram juntos. Sentimentos que tomaram seu corpo de uma maneira intrigante. Ela estremecera por instantes, inquieta.

Tão inquieta que se fez perceber, e fez o que talvez não deveria ter feito.

Nessas situações, quando se dá o primeiro passo é dificil retroceder, sentimentos primitivos, fortes e viscerais, muitas vezes quase incontroláveis..

Depois disso, retomaram o contato, primeiramente de forma virtual, (ahh essa modernidade), mas mesmo assim pareciam estar um na frente do outro, ou melhor, um dentro do outro.

Fogo, tesão, boca, língua, saliva, cheiro...o sexo pelo sexo, sem amor e nem amizade, essa experiência a estava deixado louca e excitada.

Ela sempre foi uma mulher cheia de fantasias eroticas, gostava de seduzir e de ser seduzida, isso para ela era quase um tônico para o seu corpo e sua alma..Sim !! teve muitos amantes e amores na vida, mas este homem, particularmente, a intrigava mais, não sei se pelo fato de que nunca o teve ou pela simples arte de seduzir, com um novo cenario e novos personagens, em uma nova situação nunca vivida antes...Afinal, ela havia  amadurecido, conhecia mais os homens, conhecia mais a vida, conhecia o amor com suas dores, cores e realidade...

Resolveu então dar mais um passo, precisava tê-lo, sentir sua pele, seu gosto seu cheito.. Estava derretendo

Não era uma pessoa convencional.

Gostava de lugares exóticos, diferentes, inusitados, detestava o óbvio e esse encontro exigia algo mais, pelo menos para ela, e isso no momento era só o que interessava, o "SEU " prazer.

Escolheu então um Hotel Antigo, no centro da cidade, haveria lugar melhor para a "cena do crime"?

Marcado o encontro.

Era uma quinta-feira de julho, fazia muito frio, mas seu corpo pegava fogo, resolveu tomar o caminho à pé, assim talvez sua ansiedade desaparecesse.

Ansiedade sim, estava com medo, medo da decepção, afinal eram tantas as expectativas e fantasias e medo do sublime, não sabia o que seria pior,  gostava de correr riscos.

Chegou ao Hotel uma hora antes do combinado, queria se preparar, preparar o ambiente, pediu a chave do quarto a recepcionista, sentiu um frio na barriga, vertigem

Quarto 51, uma cama antiga,  com lençois limpos mas gastos, uma poltrona vermelha no canto diretio perto da janela, uma comoda e um espelho que refletia imagens distorcidas, um cenário quase perfeito, faltavam apenas os personagens.

Entao tirou o casaco de lã que vestia, aliás havia se vestido especialmente para a ocasiao,  linda numa lingerie preta, com uma cinta liga e meias ⅞, resolveu colocar uma bota, afinal homens tem fetiches por botas e por cima colocou um vestido preto  e o casaco de lã que escondia toda a sua intenção.

Levou uma garrafa de vinho, velas e duas taças.

Caminhou até a janela, escurecia lá fora, o neon da fachada do Hotel refletia no vidro.

Abriu a garrafa de vinho e a dúvida se ele apareceria ou não começou a tomar conta de sua mente, sentiu-se desconfortável.

Será que valia a pena, será que aquele homem corresponderia à sua fantasia.

De súbito lhe bateu uma vontade de desparecer, de sumir, de nunca saber na verdade como seria o que ela tanto queria.

Estava louca, que desatino.

Virou num gole a taça de vinho.

Colocou o casaco de lã, saiu batendo a porta.

Enterrou naquele quarto de Hotel sua fantasia.

Se sentiu mais forte do que nunca. Não precisava disso, bastava o que guardava na sua imaginação, fantasias são para romances.

Sua vida era real, bem real.


Fabiana Leivas

Latente

Despertei com a quentura dos raios solares que violavam aquela maldita e horrorosa persiana, torrando minha nuca. Despertei mas, de início, não abri os olhos. Me recusava a abrir os olhos. A encarar a realidade, a verdade do meu crime. O assassinato da minha dignidade. Mas já que amor próprio faltava no recinto mesmo, abri os olhos. Lá estava ele, a dez centímetros de mim. Dormindo, e mesmo que sem sorrir, eu enxergava no semblante que sonhos triunfantes, provavelmente lúgubres, embalavam aquele sono vitorioso, de quem, mais uma vez, conseguiu o que queria. Conseguiu, com seu canto de sereia, seu DVD do Ben Harper, seu scotch 12 anos e seu sofá macio, me comer de novo.

É sempre assim: me rendo à carência, entre uma sitcom água-com-açúcar e um balde de pipoca, e disparo o telefonema. A primeira chicotada, o açoite inicial dos quatro dias de luxúria e sofreguidão. O primeiro de luxúria, e o resto de sofreguidão. É sempre um “Oi!” que me cumprimenta, é sempre um “Quanto tempo!” que me violenta. Violenta mesmo, eu sou masoquista. Segue-se um bom banho, uma escolha esmerada de looks e cheiros, e a certeza, que depois prova-se infundada, de que estou a caminho da diversão.

Amor de pica, quando bate fica. Verdade universal. Certeza inconteste. Como o sol surgindo no leste. São sempre drinks em algum boteco, alheios ao entorno. Duas pessoas, quatro, por vezes seis, chopes, e uma vontade: siri na toca. Frenético, suado, desesperado. Mas antes tem que conversar, para dar um pouco de civilidade aquele chamado da natureza. Não, é chamado da virilha, mesmo. Estou pouco me fodendo se teu chefe é um merda, se teu time ganhou “daqueles prega-frôxa” (o português paupérrimo povoa minha ressaca pós-foda, não devo jamais esquecer isso). Estou pouco me fodendo o que te fode. Quero que me fodas, só.

Vamos pedir a conta?” é a deixa. Para a cena final do primeiro ato dessa minha ópera, que cismo em encenar. Já sei que o scotch vai ficar pela metade, que o DVD só será assistido até não mais que o oitavo minuto e que aquele sofá vai ser bastante amaciado. A fodelança começa no sofá, com ângulos que fariam uma estrela pornô enrubescer. E é bom, ai, como é bom. A grande derrocada da saúde afetivo-emocional reside na total impotência deste perante uma boa trepada. Entre cálidos gemidos não se enxerga vindouros perigos. Não se enxerga nada, e se sente tudo. Se absorve, da pele para a alma. Alma que sempre lavo naquele chuveiro delicioso, para depois sujar novamente ali mesmo no chuveiro, e depois lavar novamente para sujar de novo naquela cama. Cama? Altar de sacrifício, meu sacrifício aos deuses da carne fraca.

Carne fraca e consumida pela culpa. Consumida e torrada pelos raios que me despertam, cutucando-me a nuca. Raios que só afagam o filha-da-puta, que dorme placidamente depois de me abater. Me devorar, me aniquilar. Bandido dissimulado, galinha, e que tão bem me come. Que jamais atenderá um telefonema meu nos próximos 30 dias, porque “o banana do meu chefe está me matando de tanto serviço”. Mas que me cutuca no Face, para depois me cutucar com o pinto. Pinto esse que aponta para mim, feito um perdigueiro diante da ave abatida, assim que passa o período de afastamento compulsório. Porque furar pode, baixar a guarda jamais.

Oito e meia? Caralho! Meu chefe vai foder comigo. Não tão bem quanto este merda aqui. Por isso, apesar de saber que isso nunca vai dar em nada, deixo o bilhete: “Adorei a noite, vamos nos falando”, sabendo que aquelas letras são pás de terra que sepultam meu amor próprio; são o epitáfio da minha dignidade. Que meu anjo da guarda me proteja, para que num próximo acesso de carência, vendo casais felizes de sitcoms açucaradas, eu resolva tudo no banho mesmo e me poupe desta palhaçada. Molhada, apimentada, deliciosa e orgástica palhaçada.

Diego Vargas

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

É PARA SEMPRE

A dor da perda de alguém. O “nunca mais”. Frio, sem fundo, e definitivo. Talvez a dor que o ser humano melhor saiba dissecar, que o digam os escritores, os músicos, os desconhecidos que puxam papo conosco... E o propósito destas linhas é dissecar uma perda mesmo.

A perda de um familiar é uma situação deveras específica. Cada família tem a sua dinâmica, as suas afinidades particulares (brigas igualmente); mas família a gente não escolhe. Família é multiformatos, cada um tem o seus conceitos de “família” e “parentes”, cada perda depende de cada relação, de cada... família. Já perdi familiares amados, sei como cada dor foi. Mas o que perder um tio foi para mim, por exemplo, pode não ser a mesma coisa para você. Vamos largar a hipocrisia e confrontar a verdade: amor incondicional é só de pais para proles, e ainda assim há exceções. Não vou me arriscar, por absoluta ignorância, na questão da perda de um filho. Vi com uma de minhas avós (que já não está mais aqui, aliás) o quão devastador isso pode ser. Mas se não sei o que é ter um filho, não tenho sequer como me aproximar do que venha a ser perder um.

Amor é um assunto mais complicado; eu acho que é como um sequestro, que só vai em frente, quando vai, devido à Síndrome de Estocolmo. Nos apaixonamos por quem nos raptou (e que tão bem sabe apertar nossos botões, na sequência correta). Portanto, recuperar-se da perda de um é processo particular. Mal ou bem, a gente acaba arranjando outro, se quiser. Fica um buraco no peito, pode ser que nunca mais se ame da mesma forma; tenha falecido ou não, um amor perdido deve ser tratado como tal, em nome de sua própria saúde. Amor envolve sexo, suor, lágrimas e juras infinitas. Com tanta troca assim, cada um processa a perda como quiser: manifestações artísticas, farras etílicas, “passadas de rodo” históricas, isso e muito mais, e tudo regado a muito chocolate.

Agora, perder um amigo... Quem perde um amigo, perde um universo (de regras particulares, diga-se). Porque amizade verdadeira também começa com um “Big Bang”. Essa eclosão, esse momento de gênese, pode ser um brinde entre duas tulipas de chope geladíssimo, pode ser uma gargalhada conjunta depois de um comentário extremamente irônico no local de trabalho, pode ser tanta coisa... Já disse Aristóteles: “Amizade é haver uma alma em dois corpos”. A amizade fraterna envolve um pouco daquela química da paixão, só que (a princípio, “cadum cadum”) sem o sexo. É um encaixe de alma. Um encaixe que, como disse acima, constrói um universo. E são vários universos, feito um multiverso, que perfazem o que chamamos de “roda de amigos”. Uma roda de liberdade, troça, um pouco de anarquia e muito carinho. Quem já morou longe de sua terra sabe o quão família uma roda de amigos pode se tornar. Com o tempo, aprendemos quem são os nossos reais amigos (em especial quando os ventos não são favoráveis; aí sim separamos o joio do trigo).

E perder um amigo, principalmente um irmão de alma, é perder o lado físico de algo que você construiu a quatro mãos, em igualdade de condições, sem hierarquias e sem obrigações pré-existentes. Uma convivência voluntária e pacífica que, em seu mais metafísico aspecto, foi um produto do acaso. Facilitado por circunstâncias, pode ser, mas que foi uma colisão de vidas. Somos sete bilhões de cabeças neste planeta, quase duzentos milhões só em nosso país. Criar um verdadeiro vínculo de amizade é, acima de tudo, uma bênção. Família em primeiro lugar, ao menos para mim; amor tem o seu próprio lugar (conforme o desenrolar, claro). Mas amizade, essa sim, é “o” lugar. Lugar de rir, chorar, beber, dar Coca-Cola quando a coisa pegar, dar bronca, dar dica, comprar briga, ganhar visão de mundo e, acima de tudo, aproveitar a vida.

P.S.: Ainda bem, não perdi nenhum grande amigo recentemente. Mas um amigo querido acaba de perder um amigo-irmão, e é para ambos que dedico estas palavras. Além de dedicá-las ao “figuraça” Maurício, irmão de alma que, há sete primaveras, está zoando com todo mundo em alguma nuvem, alguma estrela lá em cima; e que para sempre será lembrado como alguém que veio aqui para mostrar que é alegremente que se leva a vida.

Diego Vargas

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Fragmentos

Não sei se porque era domingo, pelo frio ou pela breve chegada de agosto, sei que a saudade era grande e a dor latejante. Dormi pra poder te encontrar pelo menos nos meu sonhos e lá te achei por instantes confusos porém marcantes, acordei, lembrei e te perdi de novo.
Parece que vivo incompleta, pintei mais os olhos, nada como uma boa maquiagem para disfarçar a tristeza e realçar a beleza que brota dela, mas uma coisa é certa, saudade é um sentimento que perdura e não tem cura!

(Fabiana Leivas)

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

(PELO DIREITO À) PAUSA PARA REFLETIR



Faz menos de duas décadas que o brasileiro livrou-se oficialmente dos grilhões da censura. O que não quer dizer que o fantasma não mais nos assombre. Recentemente, o governo dos trabalhadores, cujos integrantes desde os primeiros anos da revolucionária década de 80 bradaram contra tudo e todos (e continuam bradando com a mesma imponência, só que do outro lado da mesa e defendendo-se), tentou costurar acordos e apoios espúrios nos corredores do Planalto para controlar a imprensa. Ainda bem que, momentaneamente, esses esforços típicos do caudilhismo sul-americano tenham sido estancados, e, pelo bem geral da nação, esperamos que a situação assim permaneça, vitaliciamente.

Pois, na semana que passou, presenciamos novo grito de censura. Um parlamentar, após assistir um filme não recomendado a menores de 16 anos acompanhado de seu filho de 11 primaveras, vestiu a tão bem conhecida armadura de “ôtoridade” e, ajudado pela instantaneidade das comunicações cibernéticas, iniciou uma batalha irracional para, em seu primeiro intento, tirar o filme de circulação. Brasileiro sabe dar show, isso é senso comum. Mas o bom senso exige voz baixa e raciocínio pausado e afiado. Primeiro: ainda que amparado pela lei, por estar acompanhando o seu filho, o parlamentar em questão assumiu, ele e mais ninguém, o risco de que seu filho assistisse algo que não era para sua idade. O filme foi avaliado por uma comissão tecnicamente capaz de fazê-lo. Portanto, o hiato de 5 anos entre a idade do espectador e a idade mínima recomendada não pode passar em branco. Segundo, e o mais importante: tirar o filme de circulação? Como assim, meu senhor? Isto é censura! O Brasil não é o país da democracia? O país que exporta a melhor urna e blá-blá-blá? Devemos dar este exemplo de democracia. Num momento em que ambicionamos uma posição de titular no escrete global, dar um grito ditatorial como esse é contraproducente. É honrar o que de mais vergonhoso temos em nossa sociedade: o dois-pesos-duas-medidas. Pois imoralidade e indignidade, para qualquer um ver, seja qual for a idade, é o que mais há nesse país.

Outra discussão bem válida neste mesmo tópico foi o recente caso do vídeo que deflagrou um ódio endêmico nas nações islâmicas. Sim, o vídeo é uma completa agressão a toda e qualquer noção de bom gosto, respeito religioso e qualidade de produção. Mas a correta postura das autoridades norte-americanas no que tange a liberdade de expressão é digna de elogio. O presidente Barack Obama e sua equipe atravessaram com maestria a areia movediça que tornou-se a discussão em torno da liberdade de expressão. Porque liberdade de expressão não é isenção de responsabilidade. Quem faz a arte tem que responder por ela. Mas pode fazê-la, e ponto. Não vou entrar nos pormenores do caso: equipe ludibriada e utilizada por um diretor inescrupuloso et cetera; se o cidadão foi canalha com sua equipe, ele vai responder propriamente por isso. Mas a simples ameaça à liberdade de expressão já gerou celeuma na sociedade norte-americana. A mesma celeuma que o citado parlamentar enfrentou, em sua conta no Twitter. As demonstrações foram milhares, em milhares de formas e conceitos e opiniões, mas a chama-mestra de todas é a mesma: não há nada que o ursinho do filme faça que não se veja na sociedade. Quer o senhor queira, quer não. Permitir que os maiores de 16 anos (ou 18, conforme a reformulação do protesto do parlamentar pretende) vejam o ursinho fumar um beise, tomar todas e ser misógino é um direito constitucionalmente garantido. Acho muito mais nocivo para um adolescente ver o Paulo Maluf apertando a mão do Lula, ou ver um policial indiciado pelo Massacre do Carandiru, ocorrido há 20 anos, comandar nos dias atuais o batalhão policial conhecidamente mais truculento do país, a ROTA paulistana.

A arte é um caleidoscópio, com milhares de facetas e cores e formatos. E não é obrigatória. Cada um absorve a arte que quer, se quiser. Porque cada arte tem uma forma de expressão, uma ideia, uma mensagem. Arte livre é liberdade de expressão. Liberdade de expressão é democracia. Constituição de 1988, e ponto final. Só evolui a sociedade que sabe se avaliar. Arte é avaliação e abstração de vida. Deixar a arte livre é uma forma de deixar seus cidadãos olharem para si mesmos e refletirem. A mesma finalidade possui a educação. Uma sociedade democrática honra a arte e honra a educação. Porque sabe que cidadãos que possam expressar-se criativamente vão surgir com novas ideias. Porque sabe que cidadãos bem instruídos vão pegar essas novas ideias e trabalhá-las até que, otimizadas, possam gerar os melhores resultados. Dizer que algo não pode ser exposto é censura. Determinar que tipo de arte pode chegar ao povo que os senhores, caros políticos, representam é censura. Vemos com clareza o que ocorre na China, em Cuba, na Coreia do Norte: arte, em governos ditatoriais, nada mais é que propaganda (os caribenhos, para seu bem, gozam de um pouco mais de liberdade que as outras duas nações citadas). Arte, nessas conjunturas, vira instrumento de controle ideológico e social. Nessas sociedades, a arte livre não morre, mas fica relegada ao submundo. E arte, meu senhor, é um pássaro, tem que voar livremente. Dentro do universo da arte, há todo tipo de pássaro, de sabiás a urubus. Mas gosto é coisa individual. Eu posso ter ojeriza a pombos, mas tem quem goste. Não tenho a mínima intenção de exterminá-los, apenas os evito. Com arte é a mesma coisa. O ursinho, meu senhor, não precisa aparecer na TV aberta; concordo que nem o deva. Mas negar sua existência, e a importância da reflexão que ele possa proporcionar, é de uma ignorância sem tamanho.

(Diego Vargas)

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Tanta Coisa Boa

Sol. Lua. Coca-Cola. Jujuba. Dinheiro esquecido no bolso da calça. Mousse de maracujá. Piscadela. Matar aula. Cabelo ao vento. Cafuné. Música que te faz sorrir. Música que te faz chorar. Mensagem de texto. Mensagem no mural. Pular muro. Subir árvore. Manga no pé. Massagem no pé. Pé na jaca. O primeiro beijo, e o segundo, e o terceiro, etc. "Saudade que eu estava de ti...". Bolinho de chuva, com açúcar e canela. Comidinha da mãe...e do pai (o meu arrasa!). Filme pastelão 80's. Minisséries. 7ª série. O colegial inteiro. Aniversário de 18 anos. Todos os aniversários. Meus e de quem amo. Churrasco com salada de maionese e vinagrete. Caviar. Champagne brüt. Pastel de feira. Feira do Livro. Livros, livros e mais livros. Cores. Sons. Perfumes. Dançar no quarto, sem ninguém olhando. Dançar na pista, com todo mundo olhando. Abraço. Carinho. Docinho de festa de criança. Ser criança. Para sempre. Salário. 13º. Ganhar na loto. Ganhar flores. Ganhar experiência. Pagar mico. Sozinho ou em grupo. Segredo de amigo. Amigos. Irmãos. Amigos-irmãos. Vó. Vô. Pai. Mãe. Mãe Natureza. Cachoeira. Praia. Pôr-do-sol. Cerveja gelada. Provolone à milanesa. Milão. Paris. Frankfurt. Toda a Europa. Todo o mundo. Você. Eu. Você e eu. Com uma vida inteira pela frente. Andar em frente. Ligar a seta. Botar o cinto. Não correr demais. Com o carro e com a vida. Vida louca. Vida quieta. Vidão. Pernas pro ar. Ócio. Trabalho. Conquista. Ser conquistado. Namorar. Transar. Gozar. Fumar um cigarro logo após. Parar de fumar. Respirar. Espreguiçar. Escovar o dente. Pedir a benção. Conversar com o Papai-do-Céu. Céu de brigadeiro. Neve caindo. Edredon quentinho. Dormir com chuva. Acordar com café na cama. Suco de laranja. Com um pouquinho de vodka e muito gelo. Jogar gelo dentro da camisa de alguém. Rir. Curtir. Paquerar. Amar. Amor-próprio. Casa própria. Ou alugada. Mas a sua casa, o seu canto. Canto de pássaro. Bichinho de estimação. Lambida no rosto. Lambida onde quer que seja. Com ou sem chantilly. Morango com chantilly. Merengue. Rumba. Salsa. Cebola. Alho. Pimenta-biquinho. Biquinho, pra dar selinho. Beijo de boa-noite. Beijo de bom-dia. “Bom-dia! Uma média e um queijo quente, por favor.” Dia quente, na piscina. Dia frio, em qualquer lugar. Lugar dos sonhos. Sonhos. E realidades.

Diego Vargas

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Desligando a geladeira

Dia desses precisei fazer isso. Fechar minha casa, deixar as coisas meio como estavam e desligar a geladeira.
Quando você planeja uma vida com alguém, esse plano vem lotado de sonhos e inclusive de geladeira cheia. Tudo é cheio. Você quer prosperidade, amor, saúde e dinheiro. Você quer diversão e arte. Mas pode acontecer da geladeira virar um grande trambolho no meio da casa. Sim, porque ali vão ficando também as coisas que você comprou mas não quis comer. As coisas vão ficando feias, macilentas.
Uma observação: tive uma professora de francês que adorava a palavra “trambolho” . Ela é francesa assim da França, daquelas magras sem esforço e fumava um cigarro por dia ao lado do seu abat-jour. Acho que nem fedia a cigarro. Finamente francesa ela adorava dizer “C’est un tramboille” !
E eu adoro dizer macilentas.
Bom,mas voltando à geladeira. Quando fiz isso naquele dia, parece que então era o ato final da separação iminente, daquela palavra horrorosa chamada divórcio. Não gosto de divórcio mas também não podia desejar a viuvez. Burocraticamente era mais fácil, mas politicamente incorreto desejar isso. Eu desliguei da tomada. Eu desliguei o amor?
Não, o amor estava ali mas ficara tão doente que não tinha mais cura. Ele precisava passar pela separação, pela putrefação. Não tinha mais como adubar. Só ir pro bar, isso sim. Ainda não fiz e não creio que farei tão cedo. Tem filho, tem o carinho pelo pretenso ex-marido.
Deu errado? Não. Deu certo e deu merda durante oito anos, como qualquer relacionamento. Ou você mais me dizer que é 100% feliz 100% do tempo? Aqui ó!
A casa fechada esperando as novas mudanças.
A geladeira aberta para não ficar fedorenta.
As cortinas sem movimento. As camas sem lençol. As janelas fechadas. O telefone mudo.
O amor descansando de tanta porrada que levou.
E caminharemos assim, em estradas paralelas.
Estradas paralelas podem virar encruzilhadas."

(Melissa Vargas)

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Fogo Fátuo

Sensações febris que entram em ebulição, sangue efervescente, pele que expulsa calor por não comportar tamanha energia que em plena atividade só quer extravasar. Repulso os que não ardem, que não queimam, que não secam, que não batem e, principalmente os que facilmente oferecem a outra face. Anatematizo os crentes que condenam injustamente os que sabiamente duvidam. A passividade é inumana. Mesmo os peixes que vivem em aquários não são passivos. Não existe passividade na água que retida na tubulação da parede acumula-se numa contenção forçada prestes a irromper ao menor comando que libere passagem. A água que de gota em gota com tenacidade se esvai procurando uma saída. Evito pessoas equilibradas, controladas, pessoas mais ou menos, de sentimentos medidos, que nunca sentem sede a ponto de ficarem áridas e, que não deixam à mostra a sua erosão. A temperatura corporal nivelada não é sinal de boa saúde ou de vida. O sinônimo de morto não é o vermelho frio, é sim, o morno azul do fogo-fátuo
 
(Marinez Full)

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

S O S

Ela não conseguia respirar e o coração disparava, pensou na morte e por mais assustadora que a ideia fosse no momento seria um conforto, não suportava mais aquela situação de perder o controle sobre si mesma, pegou suas coisas, precisava sair de onde estava.

Como se flutuasse foi atravessando as mesas até chegar a porta de saída, tinha que pegar o elevador, pensou nas escadas, sim as escadas, por mais que desmaiasse ou morresse teria sorte de ninguém presenciar esse ato de fraqueza, desceu com o coração saindo pela boca, as mão suadas conseguindo alcançar a rua, andou um pouco e encontrou um banco, tudo girava, estava fora de órbita, pessoas passando, carros o barulho do trânsito, tudo bem longe e ela ali não sei aonde, respirou, abriu a bolsa e tomou um dos seus comprimidos.

Caminhou em direção ao nada, e aos poucos aquela droga que sempre lhe dava aquela sensação de conforto começava a fazer efeito, tudo ainda girava mas a diferença era que o coração voltava ao seu ritmo normal e o ar entrava melhor em seus pulmões, agora mesmo estando longe podia avaliar melhor o mundo ao seu redor, olhava as pessoas com mais calma e se perguntava quantas delas precisavam de drogas para suportar viver, quantas lotavam consultórios de psicanalistas buscando alguma razão, o porquê de continuar, quantas que nem ela estavam atrás de um alívio, mesmo que imediato, mesmo que irreal, um conforto para corações aflitos, a humanidade sobrevive de uma felicidade barata e sobreviver já não bastava, ela queria mais que isso.

Justine Pectore

domingo, 16 de setembro de 2012

Adoro não-ficção

A falta de autoestima é um problema muito grave” concluiu Pedro quando se encontrava no rumo de casa. Mais uma noite de retaliação se propagava por sua alma e pelo infinito inverno de repetições que vinha sendo aquele ano de 1993. “Eu deveria parar de acreditar”, era o que balbuciava continuamente. “De qualquer forma, ninguém nem nada vale a pena mesmo...”.
Essas transcendentes resoluções mentais, outrora proferidas pelos fortes, até então não molestavam o cotidiano do pobre coitado. Rico de espírito, mas carente de ações, Pedro nada mais era do que uma cópia dele mesmo, ou melhor, de um homem que ele sabia que poderia vir a ser. No entanto, ele insistia em aceitar situações que considerava vexatórias. Seria isso pouca confiança no mundo e no futuro? Seria ele, a essa altura, uma simplória compilação das agruras humanas? Resolveu deixar a amálgama de pensamentos para trás e continuar sua caminhada.
Cerca de dez minutos mais tarde, um som inesperado fez com que Pedro levantasse a cabeça de seu mundo inerte. Que animal seria aquele que produzia um ruído tão puro e peculiar? Olhou curiosamente à sua volta e não vislumbrou nada diferente de pedras e bitucas de fumo mal distribuídas pelo chão, separadas pelo constante passeio dos transeuntes. Resolveu continuar seu caminho, pois quando o caminho é bom, não há destino tampouco razão.
Nessa noite havia bebido somente dois copos e os passos em breve iriam diluir a fraca inebriação. Não tinha adquirido coragem, contudo sentiu no silibar dos ossos uma indignação que lhe era característica, que o acompanhava desde os treze anos de idade. Um sentimento de desvalia, de inadequação. Mais uma vez, olhou ao redor. Não faltava muito até que chegasse em casa e essa perspectiva estava longe de ser satisfatória - era deveras nauseante. O porquê ele estava com aquela mulher era algo que ele não compreendia, e por isso o sentimento de desvalia exaltava seu coração.
O que tinha ela, afinal de contas? Pedro era um bom homem, do tipo que sabia dizer “não” quando a maioria dizia “sim”; ele sempre mantivera os olhos bem abertos e o espírito aguçado. Mas sua mulher era das que não sabiam dizer “não”. Era um incessante e monótono “sim” para tudo que perpassava sua existência. Talvez tenha sido exatamente isso que a direcionou a ele. Muitos meses se passaram desde que decidiram viver juntos e quando ele tentava definir o que valorava nos seus dias, pouco tinha a explicar. Claro que ela era bonita. E era jovem como ele, ambos ainda poderiam fazer muito de suas vidas. Ele, ao menos, não estava fazendo nada. Apenas caminhando ao relento, pesaroso pela hora de deitar ao lado dela, que mesmo jovem parecia uma pedra cansada, tolhida pelo tempo, como uma fatia de queijo mofada esquecida no canto do refrigerador.
“Mais uma vez” resmungou Pedro. “Mais uma vez estou indo a lugar algum”. Ele havia gostado dela, estivera um dia apaixonado. Mas agora era tudo diferente. Ela era um pedaço de carne, por pouco não estava por se tornar podre, mofada como o queijo. O desgosto invadiu seu ser, ele parou para tentar vomitar e não conseguiu. Realmente, não havia bebido o suficiente.
Ah e como ela era egoísta! Um fruto do novo mundo, um exemplar medonho do que se conhece hoje por “mulher moderna”. Para Pedro, todos esses exemplares eram horrendos e disformes. A sutileza feminina, o sentido e a contemplação eram coisas do passado. “O que os homens têm hoje são mulheres magoadas, usadas, frias e duras. Por experimentarem o que entendem como suas maiores vivências já aos quinze anos, no momento que devem atingir suposta independência não passam de adolescentes mimadas. Como a vida poderia ser diferente!”. Recordava os livros de Agatha Christie que sua avó havia lhe confiado quando era pequeno: como aquelas histórias de mistério representavam para ele o que deveria ser o amor. “Nos anos 20, o amor era uma grande aventura, os homens pediam a mão de seus pares antes mesmo do primeiro beijo. Isso sim era amor!”. A mulher com quem Pedro dividia sua cama já havia dormido com tantos outros antes dele que nem que vivesse mais cem anos viria a ter um currículo tão vasto quanto o dela. “Será que com uma mulher feia as coisas são assim também?” indagou-se. O resto de beleza que amparava o amor repentinamente se tornara um misto de raiva e depreciação: “Malditos homens! E se eles não houvessem aceitado o disparate dos tempos modernos? E se ainda almejassem casar com mulheres puras, o que seria desses homens? Estariam fadados a permanente escuridão?”.
Não contente com a falta de repostas, Pedro respirou fundou e sentiu-se iluminado pelo que mais tarde conceberia como uma “inspiração”. Sua grande ideia fazia muito sentido no mundo em que vivia. Ele sabia que não era mais hora de se confortar. E se as mulheres podiam mudar mais em vinte anos do que os homens nos últimos duzentos, sua reação era amplamente justificada. “Algum filósofo já deve ter divagado sobre isso”.
Nos derradeiros minutos de seu percurso, Pedro rememorou tudo o que havia passado nos últimos meses. Uma série de humilhações. Nem o mais pérfido escritor de mistério teria imaginado tudo aquilo. O desprezo que sentiu em relação às mulheres ultrapassava qualquer nível de racionalidade e tolerância que outrora pudesse ter tido. Agora, cerebralmente culpava o gênero humano pelo acontecido, pela decadência da moral, pelo abandono da criação. “Para que servem os bons costumes? De que adianta eu ter reservado minha alma para tão poucas mulheres, para o amor e para a paixão?”. Seu coração foi desunificado no instante em que entendeu que quem havia sido uma vez sua amada era simplesmente o mais corrompido dos seres humanos.
Quando chegou em casa e adentrou o escuro do quarto, ela jazia deitada de lado, imóvel. Sua camisola curta fez com que o estômago de Pedro regurgitasse a última refeição. Dirigiu-se à cozinha, abriu a segunda gaveta e empunhou a faca mais afiada que dispunham. Contou até três e cortou a suada palma da mão, em busca de confirmação. Insatisfeito, decepou seu mindinho esquerdo. A vibração do sangue no escuro esbranquiçado da cozinha adquiriu uma tonalidade um tanto peculiar. A dor nem chegou a vir, ele começou a se mover devagar e a assoviar baixinho. Ainda teve um lampejo de sua baixa autoestima enquanto deslocava-se transtornado em direção à cama. Pousou a faca sobre o criado-mudo e lembrou que esse termo “criado-mudo” deveria ser muito antigo. Anterior às histórias de Agatha Christie e às ideias de Henry James. Uma única lágrima embotada atravessou seu rosto. Empunhando a faca e pintado de sangue, Pedro retornou à cozinha.
Encontrou sua gata frustrada, mirando o pote de leite vazio. A bichana pressentiu o que estava por vir e fugazmente saltou pela fresta da janela, esquecendo-se de um de seus instintos mais primordiais. Dirigiu-se, então, à varanda e chamou por sua cadela Jenny, que estava a ponto de dar à luz. Ao contrário da gata, Jenny aproximou-se correndo, balançando o pomposo rabo. Pedro desferiu um golpe certeiro na parte superior de seu pescoço, o sangue já turvo de sua roupa ganhou um novo alvorecer. Enquanto a vida esvaía-se, a cadela continuou a balançar o rabo e a olhar fixamente o dono nos olhos com afeição.
Na manhã seguinte, o pedaço de dedo, a afiada faca de cozinha e a cadela morta foram encontrados pela anônima mulher. Fez-se uma busca minuciosa por todo condado. Autoridades checaram todos os trens, ônibus e aviões, inquiriram familiares e amigos, mas jamais se soube do paradeiro de Pedro. Para alguns, o incidente denotava uma tentativa de furto seguida de agressão.
Em menos de um ano, sua ex-mulher estava vivendo com outro homem, já grávida de três meses. Os filhotes de Jenny - que miraculosamente sobreviveram ao ocorrido - estavam maiores e mais bem nutridos do que a mãe jamais fora. Antes da falência do mercado especulativo mundial, os habitantes da cidade ainda ponderavam o que poderia ter acontecido com o sensato e bom Pedro. Durante a crise, muitos se mudaram para cidades vizinhas em busca de diferentes oportunidades. A história caiu no esquecimento e o nome de Pedro não foi mais pronunciado. 

(D. R.) 

Sentidos

Acordou sem abrir os olhos, ouviu o barulho da chuva que caía ritmada lá fora, uma sinfonia da natureza, pensou no que teria que enfrentar ao levantar da cama e continuou com os olhos cerrados, talvez se isso fosse um pesadelo não precisaria acordar, a realidade gritou ao som do despertador, os olhos teimosos não obedeciam, embaçados enxergavam vultos, pelo menos eles me entendem...sorriu, imaginou se cada um de seus sentidos tivesse vontade própria como seus olhos agora, certamente os ouvidos só ouviriam belas musicas e lindas palavras, sua língua lamberia coisas saborosas e sorveria beijos intensos, seu nariz procuraria por cheiros dos melhores perfumes, flores e aromas e sua pele por carícias, mãos macias e toques de seda, mas infelizmente somos de alguma forma escravos, os olhos começaram a obedecer, ou simplesmente a cumprir sua função, então ligou o piloto automático da vida pois também precisava cumprir a sua, foi tomar uma ducha, teria que enfrentar o mundo, um banho de água fria sempre ajuda a colocar os pés no chão, a chuva continuava sua sinfonia.

(Fabiana Leivas)