A falta de autoestima é um problema muito grave” concluiu Pedro quando se encontrava no rumo de casa. Mais uma noite de retaliação se propagava por sua alma e pelo infinito inverno de repetições que vinha sendo aquele ano de 1993. “Eu deveria parar de acreditar”, era o que balbuciava continuamente. “De qualquer forma, ninguém nem nada vale a pena mesmo...”.
Essas transcendentes resoluções mentais, outrora proferidas pelos fortes, até então não molestavam o cotidiano do pobre coitado. Rico de espírito, mas carente de ações, Pedro nada mais era do que uma cópia dele mesmo, ou melhor, de um homem que ele sabia que poderia vir a ser. No entanto, ele insistia em aceitar situações que considerava vexatórias. Seria isso pouca confiança no mundo e no futuro? Seria ele, a essa altura, uma simplória compilação das agruras humanas? Resolveu deixar a amálgama de pensamentos para trás e continuar sua caminhada.
Cerca de dez minutos mais tarde, um som inesperado fez com que Pedro levantasse a cabeça de seu mundo inerte. Que animal seria aquele que produzia um ruído tão puro e peculiar? Olhou curiosamente à sua volta e não vislumbrou nada diferente de pedras e bitucas de fumo mal distribuídas pelo chão, separadas pelo constante passeio dos transeuntes. Resolveu continuar seu caminho, pois quando o caminho é bom, não há destino tampouco razão.
Nessa noite havia bebido somente dois copos e os passos em breve iriam diluir a fraca inebriação. Não tinha adquirido coragem, contudo sentiu no silibar dos ossos uma indignação que lhe era característica, que o acompanhava desde os treze anos de idade. Um sentimento de desvalia, de inadequação. Mais uma vez, olhou ao redor. Não faltava muito até que chegasse em casa e essa perspectiva estava longe de ser satisfatória - era deveras nauseante. O porquê ele estava com aquela mulher era algo que ele não compreendia, e por isso o sentimento de desvalia exaltava seu coração.
O que tinha ela, afinal de contas? Pedro era um bom homem, do tipo que sabia dizer “não” quando a maioria dizia “sim”; ele sempre mantivera os olhos bem abertos e o espírito aguçado. Mas sua mulher era das que não sabiam dizer “não”. Era um incessante e monótono “sim” para tudo que perpassava sua existência. Talvez tenha sido exatamente isso que a direcionou a ele. Muitos meses se passaram desde que decidiram viver juntos e quando ele tentava definir o que valorava nos seus dias, pouco tinha a explicar. Claro que ela era bonita. E era jovem como ele, ambos ainda poderiam fazer muito de suas vidas. Ele, ao menos, não estava fazendo nada. Apenas caminhando ao relento, pesaroso pela hora de deitar ao lado dela, que mesmo jovem parecia uma pedra cansada, tolhida pelo tempo, como uma fatia de queijo mofada esquecida no canto do refrigerador.
“Mais uma vez” resmungou Pedro. “Mais uma vez estou indo a lugar algum”. Ele havia gostado dela, estivera um dia apaixonado. Mas agora era tudo diferente. Ela era um pedaço de carne, por pouco não estava por se tornar podre, mofada como o queijo. O desgosto invadiu seu ser, ele parou para tentar vomitar e não conseguiu. Realmente, não havia bebido o suficiente.
Ah e como ela era egoísta! Um fruto do novo mundo, um exemplar medonho do que se conhece hoje por “mulher moderna”. Para Pedro, todos esses exemplares eram horrendos e disformes. A sutileza feminina, o sentido e a contemplação eram coisas do passado. “O que os homens têm hoje são mulheres magoadas, usadas, frias e duras. Por experimentarem o que entendem como suas maiores vivências já aos quinze anos, no momento que devem atingir suposta independência não passam de adolescentes mimadas. Como a vida poderia ser diferente!”. Recordava os livros de Agatha Christie que sua avó havia lhe confiado quando era pequeno: como aquelas histórias de mistério representavam para ele o que deveria ser o amor. “Nos anos 20, o amor era uma grande aventura, os homens pediam a mão de seus pares antes mesmo do primeiro beijo. Isso sim era amor!”. A mulher com quem Pedro dividia sua cama já havia dormido com tantos outros antes dele que nem que vivesse mais cem anos viria a ter um currículo tão vasto quanto o dela. “Será que com uma mulher feia as coisas são assim também?” indagou-se. O resto de beleza que amparava o amor repentinamente se tornara um misto de raiva e depreciação: “Malditos homens! E se eles não houvessem aceitado o disparate dos tempos modernos? E se ainda almejassem casar com mulheres puras, o que seria desses homens? Estariam fadados a permanente escuridão?”.
Não contente com a falta de repostas, Pedro respirou fundou e sentiu-se iluminado pelo que mais tarde conceberia como uma “inspiração”. Sua grande ideia fazia muito sentido no mundo em que vivia. Ele sabia que não era mais hora de se confortar. E se as mulheres podiam mudar mais em vinte anos do que os homens nos últimos duzentos, sua reação era amplamente justificada. “Algum filósofo já deve ter divagado sobre isso”.
Nos derradeiros minutos de seu percurso, Pedro rememorou tudo o que havia passado nos últimos meses. Uma série de humilhações. Nem o mais pérfido escritor de mistério teria imaginado tudo aquilo. O desprezo que sentiu em relação às mulheres ultrapassava qualquer nível de racionalidade e tolerância que outrora pudesse ter tido. Agora, cerebralmente culpava o gênero humano pelo acontecido, pela decadência da moral, pelo abandono da criação. “Para que servem os bons costumes? De que adianta eu ter reservado minha alma para tão poucas mulheres, para o amor e para a paixão?”. Seu coração foi desunificado no instante em que entendeu que quem havia sido uma vez sua amada era simplesmente o mais corrompido dos seres humanos.
Quando chegou em casa e adentrou o escuro do quarto, ela jazia deitada de lado, imóvel. Sua camisola curta fez com que o estômago de Pedro regurgitasse a última refeição. Dirigiu-se à cozinha, abriu a segunda gaveta e empunhou a faca mais afiada que dispunham. Contou até três e cortou a suada palma da mão, em busca de confirmação. Insatisfeito, decepou seu mindinho esquerdo. A vibração do sangue no escuro esbranquiçado da cozinha adquiriu uma tonalidade um tanto peculiar. A dor nem chegou a vir, ele começou a se mover devagar e a assoviar baixinho. Ainda teve um lampejo de sua baixa autoestima enquanto deslocava-se transtornado em direção à cama. Pousou a faca sobre o criado-mudo e lembrou que esse termo “criado-mudo” deveria ser muito antigo. Anterior às histórias de Agatha Christie e às ideias de Henry James. Uma única lágrima embotada atravessou seu rosto. Empunhando a faca e pintado de sangue, Pedro retornou à cozinha.
Encontrou sua gata frustrada, mirando o pote de leite vazio. A bichana pressentiu o que estava por vir e fugazmente saltou pela fresta da janela, esquecendo-se de um de seus instintos mais primordiais. Dirigiu-se, então, à varanda e chamou por sua cadela Jenny, que estava a ponto de dar à luz. Ao contrário da gata, Jenny aproximou-se correndo, balançando o pomposo rabo. Pedro desferiu um golpe certeiro na parte superior de seu pescoço, o sangue já turvo de sua roupa ganhou um novo alvorecer. Enquanto a vida esvaía-se, a cadela continuou a balançar o rabo e a olhar fixamente o dono nos olhos com afeição.
Na manhã seguinte, o pedaço de dedo, a afiada faca de cozinha e a cadela morta foram encontrados pela anônima mulher. Fez-se uma busca minuciosa por todo condado. Autoridades checaram todos os trens, ônibus e aviões, inquiriram familiares e amigos, mas jamais se soube do paradeiro de Pedro. Para alguns, o incidente denotava uma tentativa de furto seguida de agressão.
Em menos de um ano, sua ex-mulher estava vivendo com outro homem, já grávida de três meses. Os filhotes de Jenny - que miraculosamente sobreviveram ao ocorrido - estavam maiores e mais bem nutridos do que a mãe jamais fora. Antes da falência do mercado especulativo mundial, os habitantes da cidade ainda ponderavam o que poderia ter acontecido com o sensato e bom Pedro. Durante a crise, muitos se mudaram para cidades vizinhas em busca de diferentes oportunidades. A história caiu no esquecimento e o nome de Pedro não foi mais pronunciado.
(D. R.)