sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

MORRE MAS A GENTE VIVE

Olha, já foi mais assustador. No início, quando eu andava por este cemitério à noite, se caísse um graveto no chão era capaz de eu me mijar nas calças. Aliás, aconteceu uma vez. Não seguro mais o xixi, vou no banheiro na primeira oportunidade. Mas não por isso, é porque não faz bem. A gente tem que aprender com as merdas que acontecem, né? Me mijei, minha mãe me deu uma bronca, dizendo que eu ainda ia baixar hospital por prender demais, aprendi.

Peguei esse emprego depois que ela adoeceu. Minha mãe, véia esperta, de bom coração. Bom no que ele te dá, mas ruinzinho no trabalho. Bate meio destrambelhado, ela não pode fazer muito esforço. Sempre moramo aqui na frente, era ela a responsável por cuidar dos túmulos. Sempre cuidou bem. Mas ela não é essas pessoa negativa, que vive em função da morte. Sempre amou a vida. Por isso que cuidava daqui. Já é lugar pesado, o povo acredita nas alma penada. Minha mãe nunca acreditou. Sempre ensinou que a gente tem que ter medo dos vivo, não dos morto. Então embelezava, limpava tudo, cuidava das flor. Sempre foi um cemitério muito bonito, bem cuidado.

Pai? Sei quem é não. É filho-da-puta, isso eu sei. É não, foi. Minha mãe nunca me disse quem era, eu respeito. Foi a única pessoa que algum dia conseguiu tirar o sorriso da cara dela. E quem machuca uma pessoa tão boa tem mais é que se estrepar mesmo. Só sabia que ele tinha morrido de bala nesse mundão. Nem faz falta. Mas ela foi pai e mãe. De um só filho, tenho irmão não. Ganhava pouco aqui no cemitério, mas era empregada querida da prefeitura, pelo zelo. Era enrabichada do outro coveiro, que trabalhava aqui antes de mim. Só falava por telefone com ele, sujeito bom. Só deixei claro que se fizesse malvadeza com minha mãe, ia se fuder na minha mão. Nunca mijou fora do penico, ainda bem.

Recebi a carta de minha mãe dizendo que tava doente. Acho que foi a morte do coveiro que adoentou o coração dela. Eles se gostavam. Ela gostava de vida. E quem gosta da vida não gosta de ficar sozinho, de não ter com quem conversar. Depois que fui embora atrás de dinheiro, a veia ficou bem com ele. Se cuidavam, se gostavam. A véia ficou mal, sem mais família no mundo, voltei pra cuidar. Acho que ela não vai muito longe, mas tá bem, tá em paz. Diz que viveu bastante, viveu bem, foi feliz. Isso que importa, olhar pra trás e sentir paz.

Tive família sim. Lá eu trabalhava em metalúrgica, tinha casa minha, vida até que boa, dá pra reclamar não. Mas um dia minha Linda... Era linda mesmo, não só no nome. Minha Linda e o garoto tavam no banco, deu assalto, tiroteio. Nunca contaram de que lado veio a bala que matou. A bala, uma só. Minha Linda escondeu o Júnior atrás, a bala atravessou e matou os dois. Nem quis saber, o que me importava é que minha Linda e Juninho tinham ido, dane-se quem matou. Pelo menos pra mim, pouco importa. Foi selvageria, foi violência, foi muita bala. Morreu mais gente. Pra mim foi dor fudida. Dor de perder filho é ruim, viu? Continuei trabalhando, pra sobreviver. Fiquei triste por demais. Triste por quatro mês, só. Tragédia nunca vem sozinha. Morreu os dois, morreu o coveiro, chegou a carta. Vim acudir mamãe.

Hoje tem só eu de funcionário. O prefeito me paga o que o coveiro e a servente ganharia, se eu prometesse cuidar. Mamãe dá as dica, eu faço. É legal cuidar de flor, é legal botar cor nas coisa. Dá alegria nas vista. Mamãe tá lá em casa, eu trabalhando aqui. Mas ela tá feliz, vê a tevezinha dela e conversa bastante comigo. Sabe me aliviar a dor da falta da minha Linda e do Juninho. Tenho pouca folga, vou passear pelos campo aí pra desanuviar a cabeça. Sô novo ainda, dá pra fazer mais família. Mas agora quero não. Embelezar e cuidar bem da dor dos outro aqui me ajuda a diminuir a minha. Mamãe também ajuda, mas sei que ela não vai ficar pra sempre. Sem ninguém, vim cuidar dela, pra que o resto de vida dela seja bonito. Ela sempre fez da vida uma coisa bonita, sempre me ensinou umas coisa que deixa o coração feliz. Sempre me ensinou que a vida é bonita, mas a gente tem que enxergar beleza. E sempre me diz, depois da minha tragédia: “Filho, tu perdeu gente que tu ama. Mas num perdeu tu mesmo.”

(Diego Vargas)

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